Povos Indígenas do
Brasil
Ontem, Hoje e o
Amanhã
Éramos milhares quando os
portugueses aqui chegaram.
Tínhamos nossas crenças,
nossas tradições.
Não conhecíamos a pneumonia
nem outras doenças alienígenas.
Éramos ricos. Nossas
riquezas eram traduzidas em diversidade de línguas, tradições e rituais.
Éramos ricos, pois tínhamos
tudo do que precisávamos em abundância.
Nossos rios eram límpidos,
como o mais puro dos cristais.
Carne, batata, milho, peixe,
sustentavam a todos nós. Não havia nenhum, pobre ou miserável entre nossa
gente. Do que tínhamos todos desfrutavam.
Não havia naquela época,
desabrigados, pois todos nós poderíamos construir nossas casas onde bem
quiséssemos, pois não havia limites territoriais.
Éramos ricos. Nossas
riquezas eram nossos filhos a beira do fogo, contando nossas aventuras e
desventuras nas lutas contra animais selvagens ou seres que viviam ou protegiam
as florestas.
Nossa gente conquistava
terras e territórios dos nossos contemporâneos, mas as lutas não eram
desiguais. Não havia em nosso meio a dissimulação, o engano, a malandragem. O
jeitinho brasileiro ainda não tinha chegado nessas terras indígenas.
Naqueles tempos as armas dos
nossos inimigos eram como as nossas: era o arco e flecha, a zarabatana, a
borduna ou tacape.
Éramos ricos. Nossas
riquezas eram o respeito aos velhos e o amor às crianças.
Éramos ricos. Nossas
riquezas eram nossas liberdades, nossas autonomias e soberanias.
Éramos ricos. Nadávamos nas
centenas de rios e igarapés. Corríamos toras, jogávamos petecas. Tínhamos
nossas lutas, danças, nossas brincadeiras.
Naqueles tempos! Oh que
tempos !
Nhanderu Tupã nos deu um
paraíso, um jardim, não o Éden de Adão. Mas nem por isso não era o nosso Jardim
de delicias.
No outro Jardim, dalém de
nosso Jardim um casal fora enfeitiçado por uma serpente e acabou comendo do
fruto proibido, vindo sobre toda gente a grande maldição.
Em nosso jardim chegou três
imensas e belas canoas. Há se soubéssemos que eram belos por fora, mas que por
dentro tinha a grande maldição não teríamos deixado atracar em nossas terras.
Pois nesses grandes barcos
eles estavam trazendo para nossa gente a morte, o desprezo, a humilhação. Tudo mudou desde então.
Nossa glória se foi naquele
fatídico dia
Daquele dia em diante nossas
mulheres foram estupradas, nossos líderes foram mortos, nossas terras foram
roubadas.
Perdemos nossas liberdades,
nos tornamos escravos. Consideraram-nos sem Deus, sem lei e sem almas.
Fomos usurpados de tudo o
que tínhamos. Até os nossos cemitérios foram vilipendiados.
Perdemos o direito de
praticar nossos rituais, de falar nossas línguas, de exercer nossa jurisdição.
Consideram-nos culturas
inferiores, relativamente incapazes.
Compararam-nos aos menores de idade, pior, nos consideram imbecis
oligofrênicos.
Até açúcar envenenado nos
deram a comer. Cobriram nossa gente com roupas contendo vírus da gripe, do
sarampo e da varíola.
Queimaram nossas casas.
Fomos expulsos de nossas terras.
Nossas habitações eram até
onde nos dispuséssemos a conhecer e a dominar.
Mas os estrangeiros nos
colocaram em reservas e denominaram de aldeias.
O agora
De toda nossa terra,
restaram agora para nossa sobrevivência física e cultural cerca de 10%. Quase
90% ficaram para os descendentes daqueles nossos algozes; e ainda dizem que é
muita terra para poucos índios. Terras, aliás, que não são nossas, são bens da
União.
Pausa
Imagine chegando hoje no
Brasil, submarinos, aviões, bombas teleguiadas.
Imagine esses alienígenas
dizendo que o português não é língua que deve ser falada, pois é inculta,
Bárbara ou selvagem.
Imagine obrigando todos os
brasileiros a cultuarem uma fé estranha.
Imagine o novo conquistador
dizer que nós, os brasileiros, não temos alma, não somos gente. Que somos
inferiores e por isso podem nos fazer escravos, tomar nossas mulheres e nossos
filhos.
Imagine eles chegarem e
tirar nossa jurisdição. Dizerem que nossos tribunais são apenas costumes ou
tradições.
Destituirem nossa
organização política e social. Retirarem nossos parlamentares e até mesmo nossa
presidenta do Brasil e nomearem alguém deles, e indicarem juízes para dirimir
nossos conflitos.
Eles não teriam limites.
Diriam que não precisamos de terras, que iriam deixar para nos apenas 10%.
Eles diriam onde fica o
Congresso Nacional, os Tribunais Superiores e o Palácio do Planalto, e que tais
instituições são para eles de interesse público ou mesmo de interesse mundial.
Nenhum brasileiro teria
assento no Congresso Nacional, nenhum brasileiro seria juiz ou ministro. Os
brasileiros não teriam acesso às universidades, nem seriam gerentes ou
diretores das empresas particulares ou públicas.
Quando algum assunto
importante para os brasileiros fosse tratado no âmbito interno ou
internacional, não seriam os brasileiros que iriam falar ou defender seus
direitos, pois seriam relativamente incapazes. Quem iria falar em nome dos
brasileiros seriam os novos senhores.
Imaginem se eles achassem
que por sermos hoje quase duzentos milhões de pessoas, deveríamos diminuir
numericamente, até mesmo a deixamos de existir.
E dessem a nós brasileiros roupas contaminadas com vírus e bactérias.
Imagine ainda eles dizerem
que para o desenvolvimento da Europa, da América ou mesmo do mundo, precisam
tornar nossos rios navegáveis, precisam passar estradas, ferrovias em nossas
terras.
Imagine onde hoje é o
Maracanã, o Morumbi, o Santuário de Aparecida, a Matriz de Trindade, o Cristo
Redentor ser para eles importantes, pois precisam desses lugares para
implementar o Plano de Aceleração do Crescimento – PAC. Que isso é necessário
para o bem da humanidade.
Eles iriam prosseguir,
dizendo que era para acabar com o carnaval em todos os estados do Brasil,
principalmente o do Rio de Janeiro e o da Bahia, para dar lugar a novas festas
e tradições estrangeiras. Pois essas festas do Brasil são tudo crendice. Não
tem importância.
Mas o abuso desses
estranhos, malvados sem corações não tem limites. A cobiça deles não tem fim,
sempre querem mais.
Dizem que os médicos
brasileiros são bruxos ou feiticeiros. Pois a educação brasileira não é
educação é tudo bobagem é crendice, pois nos os brasileiros não temos Deus nem
alma.
Realmente esse povo que veio
do outro lado do oceano não tem misericórdia nem compaixão. Eles querem mais.
Agora dizem que nossa
agricultura é insignificante, que somos preguiçosos e que temos muitas terras.
Eles querem plantar soja em grande quantidade, querem criar gado em nossas
terras. Enfim precisam de nossas terras. Que vão enviar para nossas terras
colonos vindos do oriente e ou de outros lugares distantes. Pois o Brasil está
desabitado, que acabou de ser descoberto.
Agora nos os brasileiros
vamos viver às margens das rodovias, das fazendas, pois eles se tornaram donos
de nossas terras. Se tentarmos adentrar nossas terras eles vão atirar em nos,
vão nos expulsar, pois eles agora tem títulos sobre o Brasil.
Imagine que a Europa, a
América e a Igreja repartiram nossas terras e deram a eles títulos e
registraram nos cartórios deles.
Imagine ainda, que vão tirar
retirar de nosso subsolo diamante, ouro e outros minérios, pois são bens
pertencentes à UNIÃO ESTRANGEIRA.
Não adianta brigarmos,
afirmar que essa terra é nossa a mais de 500 anos. Se resistirmos, eles vãos
aos tribunais nacionais ou internacionais, não importa onde, pois quem julga
são eles. Lá não tem um único brasileiro.
Na verdade nesses lugares de decisões nem mesmo se falam português. Eles falam
em línguas desconhecidas de nos todos.
Eles dizem que nos somos
feios, cheiramos mal. Não temos cultura. Que merecemos a morte. Ou que devemos
ser expulsos do Brasil. Tem muitas terras fora do Brasil, portanto devemos nos
mudar sair daqui, somos pessoas não gratas.
O agora continua
E assim que estamos hoje.
Nossa realidade é assim:
Nós os povos indígenas do
Brasil, somos considerados intrusos em nossas terras ancestrais.
Quem decide nossas vidas
políticas, sociais, econômicas são sempre os outros. Não estamos no Judiciário,
no Legislativo Federal, nem no Executivo.
Quem nos julga são os
outros. Quem legisla sobre nós são os outros, quem administra nossas vidas são
os outros.
Em nossas terras criam gado,
plantam soja, constroem locais para lazer. Trafegam sobre nossos rios sagrados.
Fazem bases militares em nossos cemitérios e em outros lugares sagrados.
Extraem as riquezas do nosso
solo e subsolo.
Nós somos os índios do
Brasil de 2012. Somos Guarani, Kaiowá, Karajá, Pankararu, Xipaia, Kaingang,
Xavante, Apinajé, Kuikuro e outras centenas de povos com línguas, costumes,
crenças e tradições e jurisdição própria.
Vivemos na Terra Indígena
Raposa Serra do Sol, no Parque Indígena do Xingu, nas diminutas terras de São
Paulo, Santa Catarina.
Vivemos às margens das
rodovias, das fazendas que são na verdade nossas terras tradicionais.
Vivemos em milhares em
poucos hectares de terras na região de Dourados no Mato Grosso do Sul. Vivemos
em casas de lonas pretas, pois não nos permitem nem mesmo tirarmos palhas para
construir nossas ocas.
Não nos deixam tomar banhos
em nossos rios, cachoeiras. Não nos deixam viver...
O amanhã
Temos
esperança e fé no amanhã.
Esperança
e fé que nossos direitos serão efetivados.
Que
os comandos constitucionais não sejam apenas letras frias para nossa gente, mas
que saiam do papel e alcancem os corações dos juízes que ao analisar nossas
questões saibam que temos culturas diferenciadas. Que terra para nos não tem
valor econômico, mas espiritual e coletivo, e é a garantia de nossa
sobrevivência futura.
Que o Congresso Nacional
trate os índios com respeito e não como fez o Deputado Édio Lopes em recente
entrevista divulgada no jornal “A Crítica” ao dizer que os índios podem ser
consultados, mas quem vai decidir é o Congresso Nacional[1].
Infelizmente não temos deputados nem senadores, mas queremos ser respeitados e
queremos ter sim o poder de decisão sobre nossos interesses.
Temos esperança e fé que o
Executivo não mais vai lutar contra nossos direitos como tem feito a AGU e até
mesmo a Presidenta Dilma ao enviar a decisão sobre a demarcação de nossas
terras para o Ministério de Minas e Energia para atender interesses da classe
empresarial e agrária do Brasil contra os interesses dos índios do Brasil.
Acreditamos que as terras
dos Guarani-Kaiowá serão devidamente demarcadas por ser de direito. E não
somente as terras deles, mas todas as terras dos índios do Brasil.
Temos fé e esperança que
voltaremos a sorrir como naqueles tempos.
Nosso amanhã só será possível
se vocês advogados, juízes, antropólogos, acadêmicos, deputados, senadores,
cientistas sociais, religiosos, torcedores dos times brasileiros,
administradores em geral, Povo brasileiro, nos aceitar como gente, como
culturas vivas, como pessoas humanas apenas, nem melhores nem piores, apenas
gente. Diferentes sim, mas iguais em corpo, alma e espírito. Que somos sujeitos
dos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal de 1988, e que
portanto somos sujeitos de direito e, por conseguinte, do direito à vida com
dignidade.
Dignidade para nós é ter
garantido nossas terras para a sobrevivência física e cultural das nossas
presente e futura gerações.
O reconhecimento de nossos
direitos individuais e coletivos.
O direito de continuarmos
sendo índios, brasileiros, humanos.
Essas
breves linhas não são versos, nem prosas, poesias ou poemas. Não tenho dom e
nem pretensão para isso. Trata-se apenas de reflexão de alguém que carrega na
alma a alegria, tristezas, decepções, sonhos, esperança e fé em um Brasil
indígena realmente justo e pluricultural, que respeite a diversidade. Sou um
indígena brasileiro que clama para que os direitos indígenas contidos na
Constituição Federal de 1988, na Convenção nº 169/OIT, na Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e no Estatuto do Índio, sejam
respeitados, em especial dos irmãos indígenas Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
Vilmar Martins Moura Guarany
Indígena da Etnia Guarani da (Ilha do Bananal/TO)[2].
Bacharel e Mestre em Direito Econômico e Socioambiental
- PUC/PR
Prof. de Direito Civil, Agrário e Direito
Indigenista na Faculdade de Ciências Contábeis e Administração do Vale do
Juruena - AJES em Juina/MT,
Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica -
NPJ/AJES
Foi Coordenador da Coordenação Geral de Defesa dos
Direitos Indígenas da Fundação Nacional do Índio - FUNAI até fevereiro de 2007
[2]
Grupo indígena Mbya Guarani que vivem atualmente nos Estados de Mato Grosso,
Terra Indígena Xambioá/TO e Aldeia Nova Jacundá/PA. Que na década de 1980
viviam na Aldeia Karajá na Ilha do Bananal/TO.