terça-feira, 13 de novembro de 2012

Povos Indígenas do Brasil: Ontem, Hoje e o Amanhã


Povos Indígenas do Brasil
Ontem, Hoje e o Amanhã


Éramos milhares quando os portugueses aqui chegaram.
Tínhamos nossas crenças, nossas tradições.
Não conhecíamos a pneumonia nem outras doenças alienígenas.
Éramos ricos. Nossas riquezas eram traduzidas em diversidade de línguas, tradições e rituais.
Éramos ricos, pois tínhamos tudo do que precisávamos em abundância.
Nossos rios eram límpidos, como o mais puro dos cristais.
Carne, batata, milho, peixe, sustentavam a todos nós. Não havia nenhum, pobre ou miserável entre nossa gente. Do que tínhamos todos desfrutavam.
Não havia naquela época, desabrigados, pois todos nós poderíamos construir nossas casas onde bem quiséssemos, pois não havia limites territoriais.
Éramos ricos. Nossas riquezas eram nossos filhos a beira do fogo, contando nossas aventuras e desventuras nas lutas contra animais selvagens ou seres que viviam ou protegiam as florestas.
Nossa gente conquistava terras e territórios dos nossos contemporâneos, mas as lutas não eram desiguais. Não havia em nosso meio a dissimulação, o engano, a malandragem. O jeitinho brasileiro ainda não tinha chegado nessas terras indígenas.
Naqueles tempos as armas dos nossos inimigos eram como as nossas: era o arco e flecha, a zarabatana, a borduna ou tacape.
Éramos ricos. Nossas riquezas eram o respeito aos velhos e o amor às crianças.
Éramos ricos. Nossas riquezas eram nossas liberdades, nossas autonomias e soberanias.
Éramos ricos. Nadávamos nas centenas de rios e igarapés. Corríamos toras, jogávamos petecas. Tínhamos nossas lutas, danças, nossas brincadeiras.
Naqueles tempos! Oh que tempos !
Nhanderu Tupã nos deu um paraíso, um jardim, não o Éden de Adão. Mas nem por isso não era o nosso Jardim de delicias.
No outro Jardim, dalém de nosso Jardim um casal fora enfeitiçado por uma serpente e acabou comendo do fruto proibido, vindo sobre toda gente a grande maldição.
Em nosso jardim chegou três imensas e belas canoas. Há se soubéssemos que eram belos por fora, mas que por dentro tinha a grande maldição não teríamos deixado atracar em nossas terras.
Pois nesses grandes barcos eles estavam trazendo para nossa gente a morte, o desprezo, a humilhação.  Tudo mudou desde então.
Nossa glória se foi naquele fatídico dia
Daquele dia em diante nossas mulheres foram estupradas, nossos líderes foram mortos, nossas terras foram roubadas.
Perdemos nossas liberdades, nos tornamos escravos. Consideraram-nos sem Deus, sem lei e sem almas.
Fomos usurpados de tudo o que tínhamos. Até os nossos cemitérios foram vilipendiados.
Perdemos o direito de praticar nossos rituais, de falar nossas línguas, de exercer nossa jurisdição.
Consideram-nos culturas inferiores, relativamente incapazes.  Compararam-nos aos menores de idade, pior, nos consideram imbecis oligofrênicos.
Até açúcar envenenado nos deram a comer. Cobriram nossa gente com roupas contendo vírus da gripe, do sarampo e da varíola.
Queimaram nossas casas. Fomos expulsos de nossas terras.
Nossas habitações eram até onde nos dispuséssemos a conhecer e a dominar.
Mas os estrangeiros nos colocaram em reservas e denominaram de aldeias.
O agora
De toda nossa terra, restaram agora para nossa sobrevivência física e cultural cerca de 10%. Quase 90% ficaram para os descendentes daqueles nossos algozes; e ainda dizem que é muita terra para poucos índios. Terras, aliás, que não são nossas, são bens da União.
Pausa
Imagine chegando hoje no Brasil, submarinos, aviões, bombas teleguiadas.
Imagine esses alienígenas dizendo que o português não é língua que deve ser falada, pois é inculta, Bárbara ou selvagem.
Imagine obrigando todos os brasileiros a cultuarem uma fé estranha.
Imagine o novo conquistador dizer que nós, os brasileiros, não temos alma, não somos gente. Que somos inferiores e por isso podem nos fazer escravos, tomar nossas mulheres e nossos filhos.
Imagine eles chegarem e tirar nossa jurisdição. Dizerem que nossos tribunais são apenas costumes ou tradições.
Destituirem nossa organização política e social. Retirarem nossos parlamentares e até mesmo nossa presidenta do Brasil e nomearem alguém deles, e indicarem juízes para dirimir nossos conflitos.
Eles não teriam limites. Diriam que não precisamos de terras, que iriam deixar para nos apenas 10%.
Eles diriam onde fica o Congresso Nacional, os Tribunais Superiores e o Palácio do Planalto, e que tais instituições são para eles de interesse público ou mesmo de interesse mundial.
Nenhum brasileiro teria assento no Congresso Nacional, nenhum brasileiro seria juiz ou ministro. Os brasileiros não teriam acesso às universidades, nem seriam gerentes ou diretores das empresas particulares ou públicas.
Quando algum assunto importante para os brasileiros fosse tratado no âmbito interno ou internacional, não seriam os brasileiros que iriam falar ou defender seus direitos, pois seriam relativamente incapazes. Quem iria falar em nome dos brasileiros seriam os novos senhores.
Imaginem se eles achassem que por sermos hoje quase duzentos milhões de pessoas, deveríamos diminuir numericamente, até mesmo a deixamos de existir.  E dessem a nós brasileiros roupas contaminadas com vírus e bactérias.
Imagine ainda eles dizerem que para o desenvolvimento da Europa, da América ou mesmo do mundo, precisam tornar nossos rios navegáveis, precisam passar estradas, ferrovias em nossas terras.
Imagine onde hoje é o Maracanã, o Morumbi, o Santuário de Aparecida, a Matriz de Trindade, o Cristo Redentor ser para eles importantes, pois precisam desses lugares para implementar o Plano de Aceleração do Crescimento – PAC. Que isso é necessário para o bem da humanidade.
Eles iriam prosseguir, dizendo que era para acabar com o carnaval em todos os estados do Brasil, principalmente o do Rio de Janeiro e o da Bahia, para dar lugar a novas festas e tradições estrangeiras. Pois essas festas do Brasil são tudo crendice. Não tem importância.
Mas o abuso desses estranhos, malvados sem corações não tem limites. A cobiça deles não tem fim, sempre querem mais.
Dizem que os médicos brasileiros são bruxos ou feiticeiros. Pois a educação brasileira não é educação é tudo bobagem é crendice, pois nos os brasileiros não temos Deus nem alma.
Realmente esse povo que veio do outro lado do oceano não tem misericórdia nem compaixão. Eles querem mais.
Agora dizem que nossa agricultura é insignificante, que somos preguiçosos e que temos muitas terras. Eles querem plantar soja em grande quantidade, querem criar gado em nossas terras. Enfim precisam de nossas terras. Que vão enviar para nossas terras colonos vindos do oriente e ou de outros lugares distantes. Pois o Brasil está desabitado, que acabou de ser descoberto.
Agora nos os brasileiros vamos viver às margens das rodovias, das fazendas, pois eles se tornaram donos de nossas terras. Se tentarmos adentrar nossas terras eles vão atirar em nos, vão nos expulsar, pois eles agora tem títulos sobre o Brasil.
Imagine que a Europa, a América e a Igreja repartiram nossas terras e deram a eles títulos e registraram nos cartórios deles.
Imagine ainda, que vão tirar retirar de nosso subsolo diamante, ouro e outros minérios, pois são bens pertencentes à UNIÃO ESTRANGEIRA.
Não adianta brigarmos, afirmar que essa terra é nossa a mais de 500 anos. Se resistirmos, eles vãos aos tribunais nacionais ou internacionais, não importa onde, pois quem julga são eles.  Lá não tem um único brasileiro. Na verdade nesses lugares de decisões nem mesmo se falam português. Eles falam em línguas desconhecidas de nos todos.
Eles dizem que nos somos feios, cheiramos mal. Não temos cultura. Que merecemos a morte. Ou que devemos ser expulsos do Brasil. Tem muitas terras fora do Brasil, portanto devemos nos mudar sair daqui, somos pessoas não gratas.
O agora continua
E assim que estamos hoje. Nossa realidade é assim:
Nós os povos indígenas do Brasil, somos considerados intrusos em nossas terras ancestrais.
Quem decide nossas vidas políticas, sociais, econômicas são sempre os outros. Não estamos no Judiciário, no Legislativo Federal, nem no Executivo.
Quem nos julga são os outros. Quem legisla sobre nós são os outros, quem administra nossas vidas são os outros.
Em nossas terras criam gado, plantam soja, constroem locais para lazer. Trafegam sobre nossos rios sagrados. Fazem bases militares em nossos cemitérios e em outros lugares sagrados.
Extraem as riquezas do nosso solo e subsolo.
Nós somos os índios do Brasil de 2012. Somos Guarani, Kaiowá, Karajá, Pankararu, Xipaia, Kaingang, Xavante, Apinajé, Kuikuro e outras centenas de povos com línguas, costumes, crenças e tradições e jurisdição própria.
Vivemos na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Parque Indígena do Xingu, nas diminutas terras de São Paulo, Santa Catarina.
Vivemos às margens das rodovias, das fazendas que são na verdade nossas terras tradicionais.
Vivemos em milhares em poucos hectares de terras na região de Dourados no Mato Grosso do Sul. Vivemos em casas de lonas pretas, pois não nos permitem nem mesmo tirarmos palhas para construir nossas ocas.
Não nos deixam tomar banhos em nossos rios, cachoeiras. Não nos deixam viver...
O amanhã
Temos esperança e fé no amanhã.
Esperança e fé que nossos direitos serão efetivados.
Que os comandos constitucionais não sejam apenas letras frias para nossa gente, mas que saiam do papel e alcancem os corações dos juízes que ao analisar nossas questões saibam que temos culturas diferenciadas. Que terra para nos não tem valor econômico, mas espiritual e coletivo, e é a garantia de nossa sobrevivência futura.
Que o Congresso Nacional trate os índios com respeito e não como fez o Deputado Édio Lopes em recente entrevista divulgada no jornal “A Crítica” ao dizer que os índios podem ser consultados, mas quem vai decidir é o Congresso Nacional[1]. Infelizmente não temos deputados nem senadores, mas queremos ser respeitados e queremos ter sim o poder de decisão sobre nossos interesses.
Temos esperança e fé que o Executivo não mais vai lutar contra nossos direitos como tem feito a AGU e até mesmo a Presidenta Dilma ao enviar a decisão sobre a demarcação de nossas terras para o Ministério de Minas e Energia para atender interesses da classe empresarial e agrária do Brasil contra os interesses dos índios do Brasil.
Acreditamos que as terras dos Guarani-Kaiowá serão devidamente demarcadas por ser de direito. E não somente as terras deles, mas todas as terras dos índios do Brasil.
Temos fé e esperança que voltaremos a sorrir como naqueles tempos.
Nosso amanhã só será possível se vocês advogados, juízes, antropólogos, acadêmicos, deputados, senadores, cientistas sociais, religiosos, torcedores dos times brasileiros, administradores em geral, Povo brasileiro, nos aceitar como gente, como culturas vivas, como pessoas humanas apenas, nem melhores nem piores, apenas gente. Diferentes sim, mas iguais em corpo, alma e espírito. Que somos sujeitos dos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal de 1988, e que portanto somos sujeitos de direito e, por conseguinte, do direito à vida com dignidade.
Dignidade para nós é ter garantido nossas terras para a sobrevivência física e cultural das nossas presente e futura gerações.
O reconhecimento de nossos direitos individuais e coletivos.
O direito de continuarmos sendo índios, brasileiros, humanos.
Essas breves linhas não são versos, nem prosas, poesias ou poemas. Não tenho dom e nem pretensão para isso. Trata-se apenas de reflexão de alguém que carrega na alma a alegria, tristezas, decepções, sonhos, esperança e fé em um Brasil indígena realmente justo e pluricultural, que respeite a diversidade. Sou um indígena brasileiro que clama para que os direitos indígenas contidos na Constituição Federal de 1988, na Convenção nº 169/OIT, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e no Estatuto do Índio, sejam respeitados, em especial dos irmãos indígenas Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

Vilmar Martins Moura Guarany
Indígena da Etnia Guarani da (Ilha do Bananal/TO)[2].
Bacharel e Mestre em Direito Econômico e Socioambiental - PUC/PR
Prof. de Direito Civil, Agrário e Direito Indigenista na Faculdade de Ciências Contábeis e Administração do Vale do Juruena - AJES em Juina/MT,
Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica - NPJ/AJES
Foi Coordenador da Coordenação Geral de Defesa dos Direitos Indígenas da Fundação Nacional do Índio - FUNAI até fevereiro de 2007




[2] Grupo indígena Mbya Guarani que vivem atualmente nos Estados de Mato Grosso, Terra Indígena Xambioá/TO e Aldeia Nova Jacundá/PA. Que na década de 1980 viviam na Aldeia Karajá na Ilha do Bananal/TO.

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